Noite feliz

Era mais uma noite de Natal na vida do garoto. A decoração de tons fortes e predomínio do vermelho; a mesa posta com iguarias típicas do evento; a família reunida como em nenhum outro momento do ano. A tradição ainda presente. Ou "a mesma coisa de sempre", como assim se passava na cabeça dele.
O que lhe vinha na cabeça no momento era aquilo que todo meio de comunicação tenta cínicamente lhe fazer refletir nessa época do ano: o verdadeiro significado do Natal. O que a TV, jornais e revistas sempre falam é o lance da solidariedade, da união, da paz entre os povos, e coisa e tal. Mas o garoto não era tão fútil quanto a TV presumia que seus espectadores fossem. Ele sabia da intenção da Igreja em estabelecer o nascimento de seu líder em tal data. Sabia que o que ele comemora o faz, parcialmente, às cegas. Porém, sabendo ou não a data do nascimento de Jesus, tal acontecimento deveria ter sua festa. E, realmente, todos os valores "pregados" pela TV deveriam ser contemplados, posto que eram praticados pelo virtuoso aniversariante. Mas onde estava o garoto agora, senão festejando num país pobre, desigual e num mundo onde a guerra não dá trégua nem no dia em que o menino salvador numa manjedoura nasceu?
Mas o garoto também não era santo. "Vamos voltar à humanidade agora" pensava assim e se afastava de seus últimos devaneios. E, contradizendo seus pensamentos, aproveitava a ocasião, comendo, bebendo, tirando um dedo de prosa com familiares. Até que o tal significado do Natal voltasse a martelar em sua cabeça e nesse momento ele voltava a se afastar de todos. E num desses isolamentos, o garoto foi à janela apreciar a paisagem noturna da rua.

E olhando da janela ele viu Seu Quincas. Seu Quincas era um senhor maltrapilho, muito pobre, um velho que costumava vagar pela vizinhança desde muito tempo e que vivia num barraco longe dali. Não costumava pedir esmolas, mas sempre conversava sobre memórias de épocas passadas com as pessoas mais velhas da rua, contava suas piadas pras crianças que brincavam nas calçadas, ajudava aqueles que pediam sua ajuda e por isso as pessoas sempre lhe davam algum dinheiro de bom grado. Um fenômeno raro, posto que apesar de conhecerem Seu Quincas há tempos, nos dias de hoje é mais difícil dar trela à conversa de um estranho e ainda dizer que preza pela sua segurança.
O velho mostrava-se com um semblante sereno, quem sabe até um pouco contente, enquanto caminhava sozinho numa rua onde só se ouvia o burburinho das casas e se via as luzes coloridas que delas emanavam. E vendo aquele andarilho, o garoto se viu compelido a sair da casa, cruzar o portão da entrada e ir dar seu "Feliz Natal" ao velho. Seu Quincas o saudou alegremente, logo perguntou como ía sua família e começou todo aquele papo que nos faz sempre repetir aos outros por educação. Do cumprimento, logo o garoto se viu sentado na calçada escutando atentamente os causos que Seu Quincas sempre tinha pra contar, desde as pequenas festas de Natal de sua pobre infância, passando pela advertência que fazia a todas as crianças e adolescentes sobre a importância de estudar (comentava que vivia até hoje de bicos e trabalhos ruins por não ter estudado- era quase um analfabeto) , falava dos momentos de miséria e os de alegria que presenciava em sua caminhada pelas ruas, além do afeto que tinha pelos moradores dessa vizinhança. Quando o garoto deu por si, foi dentro da casa, roubou um pouco de comida e entregou ao vagante que logo se despediu com muitos agradecimentos e felicitações ao menino e sua família.

Voltando pra casa, o garoto primeiramente percebeu que ninguém havia notado sua falta. Não deu importância. Naquele momento só fez sentar numa poltrona e começar a pensar novamente. Pensou na tristeza que, apesar de não aparentar, estaria sentindo aquele velho diante de sua visão de tantas famílias felizes em suas casas confortáveis e ele lá sozinho. Mas o garoto deu uma oportunidade a Seu Quincas de se alegrar um pouco nesse Natal. E isso o fazia feliz.
As pessoas agora estavam perguntando que sorriso besta era aquele na cara do menino enquanto este fitava o nada. Ele respondia "num é nada não. Tou pensando na vida. Me deixa."

Mas no fundo ele estava realizado. Parece que finalmente tinha agido conforme o significado do Natal.

***

É isso aí pessoal. Um Feliz Natal pra vocês e um excelente ano novo. E lembrem-se que às vezes, pra fazer um dia melhor pras pessoas, basta dar a elas apenas uma oportunidade. Não me lembro quem disse essa frase, mas ela vale a pena ser repetida: "Quem não vive pra servir, não serve para viver."
"Always... no... sometimes, think it's me. But you know I know when it's a dream. I think... er... no I mean... er... yes, but it's all wrong. That is I think I disagree." (Strawberry Fields Forever - The Beatles)